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11 Nov

“Os municípios deviam criar regras de licenciamento para cooperativas”

O mercado de habitação enfrenta desafios crescentes um pouco por todo o país, e na Região Autónoma da Madeira também. Com os preços das casas cada vez mais altos e a procura a superar largamente a oferta, o acesso à habitação tem-se tornado, cada vez mais, complicado para os residentes, sobretudo jovens, famílias e trabalhadores com rendimentos médios.

As cooperativas têm surgido ao longo dos anos, dentro e fora de Portugal, como uma alternativa de habitação acessível e foi neste contexto que nasceu, na Madeira, a Atlantidomus – Cooperativa de Habitação Económica Atlântica.

Fundada em 2024, e atualmente com 83 inscritos, esta cooperativa assenta nos princípios da economia social e solidária, com os cooperantes a serem protagonistas ativos na criação de soluções habitacionais, com base num modelo transparente e comunitário, tal como explica Pedro Paixão ao idealista/news.

“A cooperativa procura sempre alinhar-se com as políticas públicas, porque não queremos remar contra a maré. Fazemos parte da solução, não do problema”, destacam.

O responsável da direção da Atlantidomus, que nesta entrevista detalha a missão da cooperativa, fala ainda sobre os desafios habitacionais e as oportunidades que surgem para quem procura alternativas ao mercado. 

Qual é o objetivo da Atlantidomus? Porque é que acharam que seria importante para a região da Madeira?

casas do Funchal

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Dois anos antes de constituir a cooperativa, tínhamos já identificado uma dificuldade crescente no acesso à habitação, algo que não acontece apenas na nossa região, mas é um problema nacional.

Percebemos que a classe mais afetada era a classe média, sendo que hoje já nem é fácil definir o que é “classe média”. Os seus rendimentos estagnaram, o poder de compra caiu e, ao mesmo tempo, há concorrência externa de quem nos visita e investe, o que faz disparar os preços das casas. E que por isto são necessárias alternativas.

A cooperativa destina-se aos habitantes locais?

Sim, o objetivo é criar soluções habitacionais para os residentes da Região Autónoma da Madeira, sem fins lucrativos. Os fogos destinam-se apenas a habitação própria permanente. Um investidor estrangeiro, por exemplo, não pode comprar para arrendar, porque os regulamentos e os estatutos da cooperativa não o permitem.

Além disso, na escritura dos fogos fica registado que o cooperante não pode vender ou dar outro uso ao imóvel durante um mínimo de 10 anos. A cooperativa tem direito de preferência e o valor de compra é calculado por fórmula legal. Portanto, não há margem para desvirtuar os objetivos.

Quais são os vossos desafios para concretizar os projetos?

Os desafios são dois: primeiro encontrar o terreno, depois avançar com a construção, sendo que com o atual custo alto dos terrenos torna inviáveis os projetos de habitação a custos controlados. Quanto mais acessível for o terreno, mais fácil será tornar os fogos acessíveis.

Praia no Porto Santo

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Temos procurado terrenos junto de entidades públicas e privadas, muitas vezes com direito de reversão e estamos em diálogo com as câmaras municipais. Um exemplo é do Porto Santo, onde a câmara está a adquirir um terreno de 11 mil metros quadrados para habitação cooperativa

O nosso objetivo é criar soluções habitacionais para os residentes da Região Autónoma da Madeira, sem fins lucrativos. Os fogos destinam-se apenas a habitação própria permanente. Um investidor estrangeiro, por exemplo, não pode comprar para arrendar, porque os regulamentos e os estatutos da cooperativa não o permitem.

Antigamente, os terrenos eram cedidos em direito de superfície, mas isso dificultava o acesso ao crédito. Agora, o modelo cooperativo permite resolver esse problema. O Porto Santo, na verdade, enfrenta desafios maiores que a Madeira devido à sua “dupla insularidade”: a construção é mais cara, faltam empresas locais e os materiais têm de ser transportados. Ainda assim, queremos marcar presença, porque os porto-santenses merecem as mesmas oportunidades de habitação que os madeirenses.

Já têm números concretos de quantas habitações vão entregar até ao fim deste ano?

Este ano ainda não, mas temos um plano estratégico até 2028/2029. Na apresentação pública desse plano, tivemos cerca de 250 a 260 candidatos a cooperantes. Enchemos a sala e até havia pessoas à porta. Por um lado, foi gratificante ver o reconhecimento do nosso trabalho. Por outro, deixou-nos um sentimento de mágoa, pois percebemos que a necessidade habitacional é maior do que imaginávamos.

E em termos de metas, como é que vocês definem o vosso plano?

Definimos o plano de forma realista e concreta. Até ao final de 2027, queremos concluir dois polos — o Polo A e o Polo B — que representam cerca de 70 fogos. Não temos, no entanto, soluções mágicas nem prometemos o impossível. Preferimos ser transparentes: 70 fogos em 2 anos é uma meta séria, alcançável e realista. O processo é longo, envolve arquitetura, especialidades, licenciamento camarário, obra, certificações e regulamento do condomínio.

Para além disso, se vencermos os concursos públicos de terrenos lançados pelo Instituto de Habitação da Madeira (IHM), poderemos criar mais um polo — o Polo AB+ — com cerca de 50 fogos. Até 2028, estão previstos ainda o Polo C e o Polo D, com mais 60 fogos. 

apartamentos

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E como é feita a atribuição das habitações? Existem critérios de prioridade?

Não atribuímos fogos pela “cor dos olhos” ou pela idade. Há critérios objetivos, nomeadamente a antiguidade na cooperativa, agregado familiar, condições habitacionais atuais, situação socioeconómica, capacidade de esforço financeiro, grau de incapacidade, jovens casais (até 35 anos) e habilitações académicas.

Este último ponto é importante. Achamos que jovens que investem muitos anos em formação académica devem ter uma pequena majoração, porque esse conhecimento beneficia toda a sociedade. São pessoas que entram tarde no mercado de trabalho, mas que contribuem com valor acrescido para o contrato social. Queremos que sintam que valeu a pena investir na formação.

E que tipo de apoio do Governo Regional?

A cooperativa procura sempre alinhar-se com as políticas públicas, porque não queremos remar contra a maré. Fazemos parte da solução, não do problema. Reconhecemos que houve um desinvestimento enorme na habitação nos últimos 25 a 30 anos, não só na Madeira mas em todo o país. Agora tenta-se recuperar com medidas estruturais, mas é difícil resolver em pouco tempo problemas que se acumularam durante décadas. O IHM tem feito um trabalho importante: programas de habitação, concursos públicos de terrenos, distribuição de fogos. Não resolve tudo, mas ajuda. As cooperativas não são a solução completa, mas são parte da solução, se trabalharem em conjunto com o Governo e os municípios.

Não atribuímos fogos pela “cor dos olhos” ou pela idade. Há critérios objetivos, nomeadamente a antiguidade na cooperativa, agregado familiar, condições habitacionais atuais, situação socioeconómica, capacidade de esforço financeiro, grau de incapacidade, jovens casais (até 35 anos) e habilitações académicas.

E qual a relação com as autarquias da Madeira?

casas no Funchal

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Do lado das câmaras, o processo é mais complicado. O planeamento urbanístico, os licenciamentos e a burocracia são lentos. Precisávamos de uma “via verde” para projetos de cooperativas, porque estamos a falar de habitação para pessoas em situação difícil. Não pedimos ilegalidades, apenas clareza, objetividade e celeridade.

Infelizmente, às vezes ficamos meses à espera de um licenciamento. Isso atrasa tudo. Defendemos que devia haver regulamentação própria para os processos das cooperativas, com prazos definidos. A Atlantidomus terá de se alinhar com essas políticas públicas se for do interesse dos nossos cooperantes.

Como é que as cooperativas podem acelerar os projetos de habitação sem depender destas soluções?

É importante lembrar que cooperativas, associações e IPSS fazem parte do setor social. Na nossa cooperativa, trabalhamos de forma voluntária para resolver um problema que é de todos. As autarquias e o Governo precisam reconhecer isso. 

Queremos fazer parte da solução, mas também precisamos de respeito e de regras claras. Os municípios deviam criar um regulamento próprio de licenciamento para cooperativas. Não se trata de “olhar rápido” para um projeto, mas de evitar burocracias absurdas: pedir sempre mais documentos, em formatos diferentes, notificar por carta registada e voltar a pedir a mesma coisa — atrasando tudo meses ou até anos.

Ilha da Madeira

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Como garantem que os preços das casas da cooperativa se mantenham acessíveis para a classe média a longo prazo?

Definir “classe média” hoje não é fácil, mas o nosso objetivo é que os fogos da cooperativa custem 30 a 40% menos do que o preço de mercado. Ainda não temos números definitivos, porque dependem dos projetos e dos custos de construção, mas pelas simulações que fizemos: um T3 não deve ultrapassar 250 a 280 mil euros, e um T2 deve ficar entre 240 a 250 mil euros.

O valor inclui o custo do terreno. Se o terreno for cedido gratuitamente, isso reduz o preço em cerca de 10 a 15%, mas não chega a metade, porque o terreno não representa 50% do investimento. São cálculos indicativos, mas mostram que estamos a trabalhar com valores realistas e sustentáveis.

É importante lembrar que cooperativas, associações e IPSS fazem parte do setor social. As autarquias e o Governo precisam reconhecer isso. 

Que conselhos dariam a quem está à procura de casa a preços acessíveis?

Há pessoas que querem seguir caminhos separados e não conseguem porque não têm alternativa de habitação; jovens que, com 35 anos, ainda vivem com os pais, sem privacidade nem independência. Isto tem impacto emocional, psicológico e social. O nosso primeiro conselho é inscrever-se na cooperativa. Se tivermos 400 inscritos, não podemos prometer casa a todos. Mas quem se encaixa nos critérios e precisa realmente, encontra aqui uma solução concreta.

Outro conselho é tentar melhorar a qualidade de vida e os rendimentos, embora reconheçamos que o mercado é limitado e os salários médios estão cada vez mais baixos. A classe média está a desaparecer, e os nossos cooperantes refletem isso: são engenheiros, médicos, juristas, economistas, professores, gestores, enfermeiros. Pessoas com formação superior, que tradicionalmente eram vistas como classe média estável. Hoje, muitas já não conseguem comprar casa no mercado. Isso mostra bem a dimensão do problema.

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